Crime contra indio Pataxo comove o país

Dois dias depois de receber de bra<os abertos a marcha pacifica e heroica dos Sem Terra, a Capital do Pais esta' chocada com o ato monstruoso de cinco jovens de classe media alta contra um indigena indefeso, poucas horas apos o "Dia do Indio".

Galdino Jesus dos Santos, 44, Pataxo Ha-Ha-Hae da area indigena Caramuru / Paraguassu, sul da Bahia, chegou a Brasilia, DF, na manha do dia 18 ultimo. Participava de uma delegacao junto a outras sete liderancas daquele povo para, com o auxilio do Secretariado Nacional do Cimi, dialogar com autoridades do poder publico a respeito da grave situacao da sua terra indigena. A delegacao Pataxo passou a tarde de sexta-feira reunida com a assessoria juridica do Cimi, programando os contatos que seriam feitos na semana seguinte, apos o feriado de 21 de abril.

Galdino estava orgulhoso. Afinal, Gerson - um de seus companheiros de delegacao, participou da comitiva de convidados do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) da audiencia com o presidente da Republica, Fernando Henrique Cardoso. Provavelmente, aproveitariam os dias de folga na cidade para visitar o acampamento do movimento, trocar ideias e informacoes sobre suas experiencias na luta pela terra.

Em mais um triste "Dia do Indio", Galdino saiu `a noite com outros indigenas para uma confraternizacao na Funai. Ao voltar, perdeu-se nas ruas de Brasilia e chegando tarde `a pensao onde estava hospedado foi impedido de entrar no local. Cansado, sentou-se num banco de parada de onibus e adormeceu.

As 5 horas da manha, Galdino acordou ardendo numa grande labareda de fogo. Um grupo "insuspeito" de cinco jovens de classe media alta, entre eles um menor de idade, residentes no Plano Piloto da Capital Federal, parou o veiculo na avenida W/2 Sul e, enquanto um manteve-se ao volante, os outros quatro dirigiram-se ate a avenida W/3 Sul, local onde se encontrava a vitima. Logo apos jogar combustivel, atearam fogo no corpo. Foram flagrados por outros jovens corajosos, ocupantes de veiculos que passavam no local e prestaram socorro `a vitima. Os criminosos foram presos e conduzidos `a 1a. Delegacia de Policia do DF onde confessaram o ato monstruoso. Ai', a estupefacao: os jovens "queriam apenas se divertir" e "pensavam tratar-se de um mendigo, nao de um indio", o homem a quem incendiaram.

Levado ainda consciente para o Hospital Regional da Asa Norte - HRAN, Galdino, com 95% do corpo com queimaduras de 3. grau, faleceu `as 2 horas da madrugada de hoje.

Neste mundo "civilizado" das grandes cidades brasileiras, as elites parecem insistir na velha maxima do general Kuster, matador de indios no seculo passado nos Estados Unidos, que se adaptada a este caso exclamaria: "mendigo bom e' mendigo morto". Os jovens monstros de Brasilia parecem ter aprendido bem a licao. Erraram apenas num "detalhe": aquele homem, humildemente vestido, de sandalia havaiana e que ali dormia, nao era um mendigo, mas um importante membro de uma comunidade indigena que estava na cidade para uma missao especial.

Este homem dormia num banco ao relento por puro descaso do orgao indigenista oficial (Funai), que nao lhe proporcionou o abrigo e a protecao devidos contra os perigos do meio urbano, aos quais nao estava acostumado. Descaso tambem do poder publico por nao ter garantido a efetivacao dos direitos territoriais do seu povo, com a qual nao teria sido necessaria a sua viagem.

Galdino nao veio `a Brasilia passear, nem mendigar. Veio para tratar da grave situacao em que vive sua comunidade, exposta a toda sorte de violencias causadas pela permanencia de invasores de suas terras, muitos deles membros da elite rural para quem "indio bom e' indio morto". Por isso assassinaram o lider Joao Cravim, seu irmao, dez anos atras, num crime ainda impune, bem como tantos outros Pataxo Ha-Ha-Hae, nestes mais de vinte anos de conflitos pela posse da terra com fazendeiros do gado e do cacau. Tambem por descaso e por omissao, morrera, como ainda morrem boa parte das criancas da comunidade, vitimas inclusive da sede, ja que fazendeiros invasores lhes impedem o acesso `a agua potavel - reservada ao gado de sua propriedade.

Por tudo isso, Galdino de Jesus estava na Capital Federal reivindicando o cumprimento do dever constitucional da Uniao Federal de proteger e fazer respeitar os direitos territoriais e a integridade fisica e moral das comunidades indigenas e seus membros.

Muitos sao os indigenas que, a exemplo de Galdino e seus parentes, vem a Brasilia e outras cidades imbuidos desta missao de falar em nome de seu povo, com a esperanca de verem o poder publico voltar a atencao para os problemas de suas comunidades. Reivindicam demarcacoes de terra, desintrusamento, justica, assistencia `a saude, educacao e subsistencia. Tudo aquilo que o governo federal tem lhes negligenciado. Nas cidades, ficam expostos `a violencia praticada no mundo "civilizado" e "moderno": assassinatos, atropelamentos, assaltos, roubos, estupros. Segundo o ultimo relatorio de Violencia Contra os Povos Indigenas, publicado pelo Cimi, nos ultimos tres anos 118 indios foram assassinados. Galdino foi queimado vivo. Nao podera' mais expor os problemas de seu povo aos representantes do poder publico, como havia planejado.

Parte deixando um recado: para as elites economicas e politicas deste pai's nao ha lugar neste mundo para os pobres e humildes, sejam indios ou mendigos.

Profundamente consternado e chocado com a monstruosidade que assistiu no dia de ontem, o Cimi vem expressar aos Pataxo Ha-Ha-Hae e a todos os povos indigenas do pai's a solidariedade e compromisso de nao deixar impune mais um crime.

Assassino "bom" e' assassino condenado e preso. Pena maxima para os monstros incendiarios de Brasilia.

Brasilia-DF, 21 de abril de 1997.
Conselho Indigenista Missionario - Cimi